A Aedas apresentou um memorial no processo, defendendo a legitimidade do MP para atuar na liquidação coletiva e apresentando dados sobre o caso do Paraopeba. Leia aqui.

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Está em processamento, no Supremo Tribunal Federal, Recurso Extraordinário no qual se debate o Tema 1270 da repercussão geral, cuja controvérsia consiste em definir a legitimidade do Ministério Público para promover a liquidação coletiva de sentença proferida em ação civil pública sobre direitos individuais homogêneos disponíveis, visando a reparação de danos individualmente sofridos pelas vítimas ou seus sucessores. 

O Ministério Público, autor do recurso, alega que a decisão do Superior Tribunal de Justiça não se alinha à orientação consolidada pelo STF, desenvolvida à luz do art. 127, caput, da Constituição Federal, que reconhece que o Ministério Público possui legitimidade para tutelar direitos individuais homogêneos disponíveis (e divisíveis) sempre que apresentem relevância social. 

Essa discussão não se refere apenas ao rompimento da barragem da Vale, mas é importante para o caso Paraopeba, pois reflete na representação das pessoas atingidas na Ação Civil Pública que discute a liquidação dos danos individuais homogêneos sofridos em decorrência do rompimento da barragem de Brumadinho. Sabemos que o número de acordo feitos, pessoas indenizadas são baixos e os resultados de ações individuais são ruins diante da disparidade de armas. 

O MPMG ou a acompanhar e se colocou como parte do processo, junto ao Ministério Público Federal.

Voto do Relator Ministro Dias Toffoli 

O ministro Dias Toffoli, relator do caso, votou pelo não reconhecimento da legitimidade do Ministério Público do Estado de Minas Gerais (MPMG) para interpor o recurso extraordinário (RE) em conjunto com o Ministério Público Federal (MPF), acompanhando a tese anteriormente fixada pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julgamento de ação civil pública proposta pelo Ministério Público do Estado de Mato Grosso do Sul (MPMS), que resultou em condenação de instituição de ensino estadual a ressarcir alguns acadêmicos de parcelas contratuais pagas e exigidas deles com base em cláusulas decretadas nulas pela Justiça. 

Ou seja, a decisão a ser tomada no STF terá que ser aplicada em casos semelhantes que venham a ser decididos em outros tribunais.

Em seu voto, o ministro sustenta que a característica mais importante da tutela em juízo de direitos individuais homogêneos a ser analisada é a dúplice forma de legitimação ativa, seja por substituição processual, seja por representação comum. Para Dias Toffoli, na primeira fase, ela ocorre, necessariamente, por substituição processual, sendo o Ministério Público legitimado para tal. Na segunda fase, por outro lado, nas ações de cumprimento, embora a legitimação possa ocorrer por meio de substituição processual, em caráter subsidiário, ela se dá, em regra, pelo regime comum. Ou seja, as próprias pessoas lesadas (e seus sucessores) devem promover a liquidação dos danos apurados, tornando essa prerrogativa tão somente subsidiária do Ministério Público. 

O argumento do relator se baseia, primordialmente, na leitura dos arts. 82 e 97 do Código de Defesa do Consumidor (CDC), destacando a legitimidade da substituição processual pelo MP, porém, limitando seu papel de promotor da execução nas ações de cumprimento. 

Em suma, para o ministro Dias Toffoli ficou demonstrado que o Ministério Público não tem legitimidade ativa para promover a liquidação correspondente aos danos individualmente sofridos pelas vítimas ou sucessores, nem para promover a execução coletiva da sentença sem a prévia liquidação individual, incumbindo a estes – vítimas e/ou sucessores – exercer a respectiva pretensão, a contar da sentença coletiva condenatória. 

O Ministro propôs a fixação da seguinte tese para o Tema nº 1.270 da Sistemática da Repercussão Geral: 

“1. Ressalvada a hipótese de reparação fluida presente no art. 100 da Lei nº 8.078, de 11 de setembro de 1990 (Código de Defesa do Consumidor), o Ministério Público não detém legitimidade para promover a liquidação e a execução de sentença proferida em ação civil coletiva sobre direitos individuais homogêneos disponíveis. 

2. Nas ações civis coletivas sobre direitos individuais homogêneos disponíveis ajuizadas pelo Ministério Público, deve-se reconhecer a legitimidade dos demais legitimados extraordinários do microssistema de tutela coletiva para, observadas as especificidades legais próprias e, caso queiram, promover a liquidação e a execução da respectiva sentença, desde que seus fins institucionais abarquem a defesa dos referidos direitos e haja compatibilidade entre tal atuação e suas funções institucionais, circunstância que deve ser analisada pelo juiz com base no contexto fático-jurídico do caso concreto. 

3. Nessas hipóteses, deve o juiz dar ampla publicidade da existência de sentença genérica proferida em tais ações ajuizadas pelo Parquet, podendo, para tanto, valer-se de todos os meios itidos pelo ordenamento jurídico, desde que sejam adequados, necessários e proporcionais em sentido estrito às circunstâncias do caso concreto”. 

Ao fim, propôs, ainda, modulação dos efeitos da decisão para que não ocorra a incidência nos processos em curso e que já possuam sentença de mérito transitada em julgado na data de publicação da ata de julgamento. Isso, inevitavelmente, afetaria a liquidação coletiva dos danos individuais no caso dos atingidos do Paraopeba, limitando os poderes do Ministério Público. 

O que é modulação dos efeitos de uma decisão? É um mecanismo jurídico que permite ao Supremo Tribunal Federal (STF) limitar a eficácia temporal de suas decisões; e a capacidade de determinar a partir de quando a decisão produzirá efeitos.

Segundo o Ministro seria necessário garantir um regime de transição para que ela seja aplicada sem causar tumulto processual, haja vista que existem diversas liquidações em andamento.

“Decerto que reconhecer a ilegitimidade do Parquet para atuar nos casos em que já esteja em curso a fase de liquidação, cuja sentença envolva centenas ou mesmo milhares de substituídos, poderá gerar transtornos inimagináveis com a aplicação imediata da tese.”

Voto do Ministro Alexandre de Moraes 

O ministro Alexandre de Moraes abriu divergência com o voto do relator para considerar a legitimidade do Ministério Público para promover liquidação de sentença genérica que trata de direitos individuais homogêneos, posto que, conforme jurisprudência da Corte, são direitos que ultraam a esfera de interesses particulares e comprometem interesses sociais.  

Segundo o ministro, 

Certos interesses individuais, quando aferidos em conjunto, de modo coletivo e impessoal, têm o condão de transcender a esfera de interesses estritamente particulares, convolando-se em verdadeiros interesses da comunidade, emergindo daí a legitimidade do Ministério Público para ajuizar ação civil pública, com amparo no art. 127 da Constituição Federal. 

Isto porque, a partir de diversos julgados, foi adotado um posicionamento, pelo STF, que amplia a legitimação do MP para que possa atuar na defesa irrestrita de quaisquer direitos homogêneos, resguardando interesses da sociedade ou de segmentos dela, e devendo assumir a legitimação ativa para promover as medidas cabíveis para a tutela jurisdicional. 

Nesse sentido, traz entendimento de julgado que leciona que a função do MP é, dentro outras, “promover o inquérito e a ação civil pública, para a proteção do patrimônio público e social, do meio ambiente e de outros interesses difusos e coletivos”. 

O ministro ainda diz que a atuação do Ministério Público em contextos revestidos de interesses sociais qualificados, mesmo que trate de direitos divisíveis, disponíveis e com titulares determinados ou determináveis, possui amparo diretamente do art. 127 da Constituição Federal. Entende-se, portanto, que é a demonstração da existência de um interesse social no objeto de demanda que autoriza a legitimidade do MP, e não propriamente a natureza individual ou coletiva de tal interesse. 

Assim, compreende que a atuação do Ministério Público é justificada quando visa: facilitar o amplo o à Justiça (art. 5º, XXXV); garantir a obtenção de decisões judiciais justas e legítimas (art. 5º, LIV); favorecer a efetiva e eficaz entrega da prestação jurisdicional (arts. 5º, LXXVIII, 127, caput e 129, III); conferir tratamento isonômico aos jurisdicionados (art. 5º, caput); e proteger a vulnerabilidade dos detentores do direito coletivo reivindicado (art. 5º, XXXII, XXXV, XXXVI).  

O Ministro afirma:  

Havendo a legitimidade do Ministério Público para propor a ação de conhecimento em relação a direitos individuais homogêneos – porque evidenciado que tal direito individual homogêneo possui relevância social – haverá, por consequência, a relevância social (interesses sociais subjacentes) para sua liquidação e execução, enquanto fases necessárias para a solução integral do mérito e concretização da tutela processual adequada. 

Destaca que a efetivação dos direitos individuais homogêneos possui igual ou maior relevância social do que seu reconhecimento. Por essa razão, considera que limitar a atuação do MP à fase de conhecimento é equivocada, posto que tolheria as condições de garantir a eficácia da decisão que preserva relevância social e que visa recompor o patrimônio de cada vítima. O oposto desta compreensão é a completa ausência de sentido da propositura da ação desde o início.  

O Ministro cita os casos decorrentes dos rompimentos de barragens em Mariana Brumadinho para exemplificar interesses de alta relevância e para justificar a atuação do MP.  Moraes afirma que a importância da atuação MP não está tão somente na reunião de dados e percepções teóricas sobre tema, mas, sobretudo, “se mostrado a única possível, sem o que as decisões condenatórias estiolar-se-iam a ponto de se findarem como se nadas jurídicos fossem”. O ministro reconhece que é o Ministério Público de Minas Gerais que “tem atuado ativamente para propiciar reparação mínima aos atingidos, promovendo a liquidação e cumprimento de sentença em favor dos atingidos pelo fatídico desastre socioambiental”. 

O ministro ainda considera prejuízos irreparáveis caso seja considerada a ilegitimidade do MP na defesa dos direitos individuais homogêneos, quais sejam: sobrecarga do sistema jurídico, devido a quantidade exorbitante de ações individuais que versam sobre a mesma causa de pedir; e o enriquecimento sem causa do causador de danos em massa quando o valor devido for diminuto se individualmente considerado; e o desestímulo direto ao ajuizamento de execuções individuais. 

Argumenta que somente interessa aos causadores de atos ilícitos a inação do MP e a negação de sua legitimidade para defender interesses socialmente relevantes, bem como a restrição de tutela coletiva de direitos individuais homogêneos. 

Por fim, considera que a permissão da atuação do MP para propor ação de conhecimento que versam sobre o caráter coletivo da proteção dos direitos individuais homogêneos, associados ao interesse social, corrobora a necessidade de reconhecimento de sua legitimidade para atuar na fase de liquidação e execução de sentença genérica. Esta medida favorece a racionalização do trabalho do Poder Judiciário, a isonomia de soluções para titulares de direitos idênticos, a eficiência da prestação jurisdicional, a duração razoável do processo e a justiça das decisões.  

Tese defendida: “O Ministério Público tem legitimidade para promover a liquidação e a execução coletiva da sentença genérica que versa sobre direitos individuais homogêneos em favor das vítimas e/ou seus sucessores quando presente o interesse social, à luz do art. 127, caput, da Constituição Federal“, especialmente quando há interesse social envolvido, como é o caso de desastres como o de Brumadinho.

ANAB se apresentou como Amicus Curie 

A Associação Nacional de Atingidos por Barragens (ANAB) ingressou como amicus curie no processo em julgamento no STF, que discute a legitimidade do Ministério Público para promover liquidação de sentença genérica que versa sobre direitos individuais homogêneos.  

A Aedas apresentou um memorial no processo, defendendo a legitimidade do Ministério Público para atuar na liquidação coletiva e apresentando dados sobre o caso do Paraopeba, leia abaixo:

O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) publicou uma carta aberta ao STF sobre legitimidade do MP na atuação dos casos de reparação coletiva dos atingidos, leia abaixo:

Leia abaixo o parecer da ANAB

A associação ingressa na defesa da relevância ministerial na proteção do interesse da população atingida quanto à reparação dos danos individuais homogêneos, a partir do argumento da relevância social, que ultraa a esfera de interesses puramente particulares. A ANAB entende que quando o MP atua na defesa dos direitos individuais homogêneos, está atuando para prevenir e reduzir conflito, podendo combater a dispersão das vítimas e/ou afetados; diminuir a sobrecarga do Judiciário; e evitar decisões conflitantes. Este posicionamento também foi corroborado pelo voto do Ministro Alexandre de Moraes. 

A ANAB, igualmente, fundamenta sua argumentação em decisões do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG), no caso Paraopeba, que reconhecem o interesse da comunidade e a vulnerabilidade das pessoas atingidas. Nesse sentido, a legitimidade do MP é justificada pela natureza jurídica dos danos individuais homogêneos, que decorrem de origem comum e pela legislação aplicável aos atingidos, bem como pela complexidade e extensão dos danos decorrentes do rompimento. De tal modo, a legitimidade do Ministério Público é reconhecida como um meio processual para garantir a tutela coletiva diante da relevância social e coletiva do caso em busca reparação integral dos danos.  

Corroborando o reconhecimento da vulnerabilidade das pessoas atingidas e o notável interesse social na reparação integral dos danos causados pelo rompimento da barragem de Brumadinho, juízes e desembargadores do TJMG têm decidido a favor da liquidação coletiva com a representação do MP, a necessidade de atuação das assessorias técnicas independentes, a inversão do ônus da prova e a suspensão de ações individuais que versam sobre a mesma causa de pedir (exceto ações de saúde e ações que estejam em fase de execução), com base no microssistema de proteção estabelecido nas legislações PNAB e PEAB, que regulam os direitos das populações atingidas por barragens.  

A defesa da ANAB denota-se importante, posto que põe luz sobre argumentos controversos apresentados pela mineradora Vale S.A. no tocante ao cumprimento das suas obrigações de reparar. Ponto de destaque de argumentação da ANAB é o contraste entre o número de pessoas que a Vale diz ter indenizado (14.680 pessoas) contra o número de pessoas beneficiárias do Programa de Transferência de Renda (159.192 pessoas, além das 5.840 pessoas, cujos pedidos de inclusão estão em análise e 3.288 pessoas cuja inclusão depende de decisão das Instituições de Justiça), o que demonstra tanto a disparidade com a realidade – haja vista que o número de pessoas cadastradas no programa não reflete a quantidade de pessoas atingidas, posto que as regras do programa são mais restritas do que as elencadas na legislação específica –, quanto  a distância que ainda é preciso percorrer para garantir a reparação dos danos individuais homogêneos.  

De tal forma, se postula em favor da legitimidade do Ministério Público como ente capaz de promover a defesa dos direitos das pessoas atingidas, bem como agira em prol da eficiência da prestação da tutela jurisdicional, garantido tanto a isonomia, quanto a economia processual e a segurança jurídica. Essa legitimidade se revela com especial nitidez em casos de desastres socioambientais, nos quais a liquidação coletiva de danos individuais homogêneos não envolve apenas interesses individuais e disponíveis, mas também — e inevitavelmente — um interesse coletivo e social que lhes é inerente. 

O Movimento Paraopeba Participa protocolou no STF uma Carta Pública em defesa do direito à justiça coletiva e popular! Veja abaixo:

Carta Pública do Movimento Paraopeba Participa

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MPMG defende no STF legitimidade do MP para liquidar sentença coletiva sobre direitos individuais


Próximos os: pedido de vista do Ministro Flávio Dino  

O julgamento foi suspenso após pedido de vista do Ministro Flávio Dino, que irá proferir seu voto em momento posterior. Retoma-se que, até o momento, o julgamento está empatado, com um voto contra a legitimidade do MP e outro a favor. O voto restante é crucial para sedimentar o entendimento a respeito da atuação do Ministério Público em ações que tratam de direitos individuais homogêneos. 

O processo de resolução coletiva segue em andamento no Paraopeba e a Defensoria Pública também segue com legitimidade.

Segundo o Regimento Interno do STF, esse período pode durar até 90 dias. Enquanto isso, o julgamento fica temporariamente suspenso.


Texto: Equipe de Estratégias Jurídicas da Reparação (EJR) da Aedas – Paraopeba